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Avó

 Gostavas de usar brincos, colares e anéis. Tinhas milhares. Uma vez disseste que quando morresses eu ia herdar as bugigangas todas. Ri-me e abracei-te “nunca vais morrer”. Eu sabia que ia chegar o dia, mas pensar nele doía. Doía no peito, na alma e no corpo todo pela fraqueza que provocava. As vezes pensar nisso enchia tanto que me fazia transbordar. Contigo transbordei tantas vezes. Apesar de tudo. Acima de tudo. Não me escolheste na última vez, mas escolheste-me a vida toda. É por isso que o meu coração agora não para de doer. Porque eu sei que sempre me escolheste. A vida quis que os nossos caminhos seguissem separados e eu julguei que lidaria bem com isso. Tenho lidado… varrer a poeira para baixo do tapete é tarefa fácil. Eu só não contava ter de o levantar tão cedo. Pensar em ti é pensar num amor incondicional, mas que me deixa triste pela forma como acabou. Cuidaste de mim a minha vida toda. Ainda ontem, se eu queria fazer a árvore de natal eras tu que estavas ali a ajudar-me com as luzes. Se eu queria fazer um bolo, eras tu que vinhas mesmo sem eu te chamar e opinavas sobre a receita. Depois raspávamos o tacho juntas. Amava-te tanto. Levaste-me à escola todos os dias durante 4 anos e eu acho que eras tão feliz quanto eu. Às vezes dizia-te que queria fazer uma sessão fotográfica, e tu com os teus oitenta e poucos, agarravas no meu telemóvel e carregavas no botão até eu me fartar. Ensinaste-me a coser à máquina e a fazer tricô. Alinhavas em tudo. Isso também era amor. As vezes zangávamo-nos, mas dias depois abraçávamo-nos. Onde é que ficou o último abraço? Perdemo-nos nos entretantos. E entretanto a vida passa. Entretanto viram-se as costas e nunca mais nos olhamos. Quero que saibas, onde quer que estejas, nunca te virei as costas, foste tu quem me quis deixar de olhar. Gostava de saber o que te fez deixar de querer acordar para a vida todas as manhãs. Tu adoravas manhãs. Compravas o pão, ias ao café e fazias ginástica. As vezes queixavas-te de dores, e eu ria-me “tu não tens dores, não finjas”. Porque eu achava que não havia dor que te vencesse… Não conhecia a dor silenciosa que podias carregar, a que te encheu de força. Foram precisos estes anos todos para me surpreenderes. Tenho ainda de te dizer que todos os dias me deito com a cabeça leve na almofada, não sei se sabias disso ou se foste com a ideia errada, mas sempre fui exatamente aquilo que quis ser, sempre fiz aquilo que achei certo. Acho que foi aqui que nos perdemos… o certo e o errado têm pesos diferentes na vida de cada um. Fizeste algumas coisas erradas, embora eu ache que não saibas disso. Mas não te culpo. Quem nunca errou que atire a primeira pedra. Mas sabes, isso agora não vale de nada. Agora existe uma mão cheia de nada e tanta coisa por dizer. Mas dei o melhor de mim. Sempre. Tenho orgulho na mulher que sou. Não sei se chegaste a ter. Mas não importa, amei-te na mesma. Não me esqueci de todas as coisas más, mas ironicamente agora só me consigo lembrar das boas. Invadem-me a cabeça como se não existisse mais nada. É possível? Achas que o amor apaga tudo o resto? Talvez. As minhas lágrimas não param de cair desde que me tiraram o chão. Aquele, que eu achei que estava bem firme e que suportava toda a poeira, com o tapete por cima. No entanto, não havia mais nada que pudesse fazer por ti, eu tentei, mas ambas sabemos como eras teimosa. Resta-me desejar-te paz. De certo que andavas à procura dela, seja lá por que for. Espero que encontres luz e descanso. Vou guardar-te para sempre, porque isso ninguém me tira.

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