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Ferida

 Li algures que de alguma forma o sofrimento nos coloca diante nós próprios. Na altura não entendi bem a frase, mas guardei-a porque senti que algum dia iria fazer sentido. Tocou-me.

Hoje consigo entender o porquê de não lhe ver o significado. Não tinha tido ainda oportunidade dispensável de me ver refletida na poça das minhas próprias lágrimas. Hoje o sofrimento bateu a minha porta. Por nada em especial, por tudo num todo. 

Quando respondia a questões como “descreve-te num pequeno texto” ou “quais são as características que te definem”, a minha reação era logo um sorriso nos lábios - isto é música para os meus ouvidos - pensava eu, porque escrever era a minha paixão e descrever-me era a minha facilidade. Então era quase como uma melodia escrita em que tentava colocar em palavras que era feliz. Tão feliz. Que era alegre, que a simpatia morava em mim. Que era uma miúda doce, que as pessoas trocavam dois dedos de conversa comigo e logo me adoravam, porque simplesmente “o santo bateu”. Tive tantas vezes essa sensação na vida. Que coisa maravilhosa. Tanta gente que gostava de mim, que saia de ao pé de mim com um “que boa vibe que ela tem” guardado debaixo da língua. Porque eu era isso. Comunicação, risos, boa disposição e amor. 

Hoje, já não sei o que mora em mim.

É como se tivesse um vento muito forte, extremamente forte, a soprar contra mim e a cansar-me tanto que esses bons sentimentos se estão a perder. É aqui que nos questionamos. É aqui que a frase ganha vida e sentido. Estou diante mim, mais sozinha que nunca, apesar de rodeada de amor, a olhar para o meu sofrimento e a pensar “porquê?”. Acho que essa é a primeira pergunta que abre um leque de dúvidas. Porquê isto tudo. Porquê tanto. Porquê desta forma. E principalmente, porque é que não acaba? Se as pessoas soubessem o barulho ensurdecedor que se esconde por baixo da minha gargalhada, jamais me mandariam fazer menos barulho. Jamais me mandariam baixar a música. É a melodia que me salva. Cheguei ao ponto de não conseguir lidar com o meu próprio silêncio. 

Tomo muita atenção a coisas que pessoas que eu admiro me dizem, uma delas um dia destes disse-me que estar connosco próprios é das melhores coisas que existe, se soubermos como desfrutar disso. Não faço ideia de como o fazer. 

Estou a viver uma vida em que não me enquadro, em que já não me revejo, a deixar-me levar ao sabor do que quer que me leve, porque flutuar é imensamente melhor do que sentir este peso, esta carga que me deram, sem eu pedir, ou merecer. Nunca mereci. É a única certeza que tenho. Consigo despir-me de façanhas e humildemente abrir o meu coração para mostrar tudo o que percorre nele. Medos, traumas, sentimento de abandono e ansiedade. Costumava dizer que tinha ansiedade, há algum tempo descobri que é ela que me tem. Ela é que é a minha dona, ela é que toma conta de mim, vai e vem quando quer. Tenho trauma de abandono e pânico de perder. 

Abandonaram-me de tal forma, perdi de tal forma que o vazio que ficou jamais se ocupa. Jamais. Nem por quem mais amei sou capaz de voltar a sentir amor. 

É aqui que me encontro, onde não existe mais solução nenhuma a não ser continuar a lutar. Porque independentemente de todas as provações, eu sou amor. Continuo a entregar-me e a apaixonar-me todos os dias pelos detalhes. Detalhes. Aqueles que nos fazem também perder o encanto. Espero continuar a ter forças e a que a vida brilhe para mim. Nunca me preocupei a pedir nada que fosse intangível, mas neste momento abdicava de tudo o que é palpável para ter uma recompensa de luz. É tudo o que quero. 

Nunca gostei da pergunta obrigatória das entrevistas em que nos questionam sobre onde nos vemos daqui a cinco anos. Quase que nos temos de confrontar com um conto de fadas feito à pressão, e nos cinco segundos a seguir nos passa pela cabeça a vivenda com relvado, o carro que queremos ao portão, os filhos a correr e o cão a rebolar-se na relva. Engraçado. Há precisamente cinco anos atrás tive quase tudo, e digo quase, porque não sou mãe. Que ingénua que eu era na resposta que dava. Afinal, passados cinco anos eu não queria nada do que tive. A única coisa que queria é ser feliz. Que clichê. Mas que verdade. A única coisa que quero é sentir que consigo viver e alcançar a plenitude sem bens materiais. Aqueles que fazem toda a diferença, mas que nos destroem na mesma proporção.

Hoje, o final do dia, o final da semana, o dia em que me deparo com o meu próprio sofrimento e as lágrimas são suficientes para me alagar, eu dava tudo para recuar no tempo e ter feito escolhas certas. Dava tudo para ter a possibilidade de escolher ser feliz. 

Hoje, eu dava tudo para que a criança que vivia em mim tivesse orgulho na pessoa que sou hoje.espero que esse dia chegue. Espero que não seja só isto. Mas isto é hoje, que a facilidade de transformar sentimentos em palavras levou a melhor de mim. 

Porque nem todos os dias são flores, sorrisos e fotografias bonitas. Há dias escuros, todos nós os temos, mas nem todos os mostram. Eu escolho libertar-me dos meus fantasmas em vez de os guardar para mim. Mas amanhã é outro dia, amanhã volto a rir alto e a aumentar o volume da música, pego no escudo e vou para a luta, porque sou mais forte do que julgava, mas estou cansada.

Isto é sobre aprender a aceitar a dor, e está tudo bem. Porque no fim, fica sempre tudo bem.

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