Há algum tempo alguém me disse que devia escrever-te. Não tive vontade e a ideia deixou-me revoltada. Ainda não sei se irás ser conhecedor destas palavras, mas agora tenho vontade e necessidade de as dizer. Há muita coisa que não sabes. A primeira, é que quando estamos dentro da bolha não conseguimos enxergar para fora dela, achamos que só existe aquele mundo, que é tudo imaculado e que fora dele é o desespero e que ficamos sem chão. Pois então vou dar-te uma novidade que talvez não saibas: eu desesperei e perdi o chão. Porque tal como tu, só conhecia o mundo dentro dessa pequena e apertada cúpula, onde tu vives e eu acredito que sempre viverás. Sempre vivi sob um céu estrelado que achei que me iria iluminar a vida inteira, que nunca me deixaria perder o rumo, e a verdade é que continuo a viver. Tenho muito de ti, mas sou uma versão muito mais melhorada. Tu, não saberias levantar-te do caos, e eu não só me levantei, como voltei a subir. Sabes porquê? Porque sempre me recusei a ficar ali, deitada no chão. A segunda coisa que tu não sabes, é o que é a coragem. Coragem é quando saímos da nossa zona de conforto e ainda assim, somos fortes o suficiente para caminhar e ir avante, sem olhar para trás. Nunca foste corajoso, talvez nunca tivesses precisado de o ser, talvez quem mais tivesse precisado que tu tivesses sido, era eu. Mas tu não o foste. Toda a minha vida, durante vinte e cinco anos, foste motivo de orgulho para mim por tudo, e também por nada. Eras o meu pai. Não precisavas de falar para eu saber que estavas ali, sempre, julgava eu. Nunca tivemos muitas conversas sérias e intensas, mas as poucas que tivemos, fizeram-me ver o quão vulnerável és. Um dia choraste no meu ombro, quando viste o teu mundo a desabar. Nessa altura viste o tal tapete a escapar, tal como eu, mas disseste-me em lágrimas “o pai vai estar sempre aqui contigo, filha”. É quando penso nisso, que percebo o grau de ingenuidade que me envolve porque mais uma vez, eu acreditei. Há quem diga que tu sempre soubeste que eras enganado, mas que sempre te deixaste ficar, por não saberes o que seria a vida, fora da bolha. Eu, e a minha ingenuidade, continuamos a achar que tu não sabes de nada, e se algum dia tiveste a perceção disso foste ao mais fundo do teu coração procurar motivos para te desacreditares, e acho que conseguiste. Quando queremos muito uma coisa, ela torna-se verdade. E é nessa verdade mentirosa que tu vives, infeliz. Esta é a terceira coisa que tu não sabes, aqui do lado de fora, as coisas são tão claras. Aquilo que tu julgavas não ser possível, de repente é. E tens provas tão evidentes que ficas transtornado só de perceber como é que foste tão cego. Estou a falar de mim, tu continuas a sê-lo. Mas não é disso que se trata. Percebi que aquilo que se é enquanto homem é diferente daquilo que se é enquanto pai. Enquanto homem, tens fraqueza, tens medo, estás preso a algo que achas que não vives sem, e como se não bastasse, és infeliz, tendo consciência disso. Agora, eu sei que tens consciência disso. No entanto, enquanto pai, podias ter continuado a ser o meu exemplo. Ainda que fraco e medroso, eu estaria aqui sempre para que nunca te sentisses sozinho, para te relembrar que és muito melhor do que acreditas ser. Mas falhaste. Em tudo. O amor, o orgulho, o respeito… Tudo aquilo que eu sentia por ti, desapareceu. Sinto pena. E julgo que este é o pior sentimento que se pode sentir por alguém. Infelizmente, é tudo o que sinto por ti. Mas ainda assim, tenho um coração, apertado cada vez que penso em ti. Não sei como, nem porquê… podia dizer que era a parte de mim, que veio de ti, mas não faz sentido. Tu demonstraste não sentir compaixão por mim. Certamente isto é algo só meu. Mas o que eu te quero dizer no fim de contas, é que lamento. Lamento tanto. Eu acreditava na família feliz e perfeita. Acreditava, no impossível. Mas há tanta gente a viver assim… Algumas aprendem mais tarde ou mais cedo que não existem contos de fadas. Mas eu precisava de aprender desta forma? Tão má? Tão fria? Tão suja? Tão desprovida de respeito humano e sentimentos? Achava que o teu desejo era ser pai, e que eras feliz por isso. Achava até que o teu desejo agora, era ser avô e que viverias mais 50 anos, só para isso. Mas enganei-me. Escrevo estas palavras com um nó na garganta, o mesmo que me vai acompanhar até ao fim dos meus dias, por a facada tão limpa que levei. Quero que saibas ainda, que não espero uma reconciliação. Não acho que queiras, eu também obviamente não a procuro. A vida quis que eu abrisse os olhos a tempo, quis que eu desse cinco passos atrás, para dar dez à frente. E não imaginas na pessoa que isso me tornou. Acredita, eu já era uma boa pessoa, do bem, para o bem, mas agora? Sou incapaz de pensar no mal, porque me custou na pele. Apesar do berço de ouro, sempre soube que existia maldade no mundo, o que eu não sabia era que ela poderia vir, das pessoas que eu mais amava. Pior, o que eu não sabia, é que quando ela viesse, não havia ninguém a tentar impedir: ei-lo tu. Ser pulso firme para ser capaz de travar o monstruoso e desumano. Com um bloqueio mental que te tirou as forças, com uma incapacidade de pensar, que te custou a alegria de viver. Há uma coisa que tu já sabes. Perdeste-me. Perdeste o teu neto. Perdeste a tua neta. Que um dia hão de existir. Perdeste os passeios de avô, perdeste as brincadeiras, os ensinamentos, a felicidade, e a bênção de ser pai, e avô. Se bem te conheço, também te perdeste a ti. E lamento. Lamento tanto por seres tão fraco. Lamento tanto, por na única vez em que podias ter provado impreterivelmente o teu amor por mim, te tivesses deixado ficar. Eu amava-te tanto. Eras o meu pai. O meu orgulho. O homem da minha vida. Aquele que, pudesse o mundo acabar, eu saberia que seria sempre meu. Mas tu escolheste assim. Mas há uma quarta coisa que tu não sabes, pai. Pássaro que vive em gaiola, acredita que voar é doença. Eu também achava. Mas estou tão grata. Não sou hipócrita, o meu coração está partido para sempre. Ainda que cicatrize bem, as marcas são eternas. Mas sou feliz. Sou lucida, sou amada, sou respeitada. Sou livre. Não sabia o que era ser livre, ser livre é não viver rodeada de jogos psicológicos, de pressão, de controle. Sou leve. Quem me dera que te tivesses permitido a estes sentimentos. Ias perder algo, com certeza, mas ias ganhar tanto. Ias ser feliz. Mas se bem te conheço, morreste no dia em que ficaste sem mim. Mas quero que saibas mais uma coisa: Eu perdoo-te. Perdoo-te porque só assim poderei ser feliz. Só ao perdoar-te, consigo arrancar a raiva e o rancor do meu coração, e deixar apenas este sentimento leve de pena. Pena do que és e do que vais ser daqui em diante. Tenho saudades tuas. Tantas. Nem sei como é possível, depois do mal deliberado que me fizeste e que permitiste que me fizessem. Mas sinto. Sinto saudades das palmadinhas que me davas enquanto me davas um beijinho e dizias “então filhota, dá um beijinho ao pai”. Sinto saudades das horas que passava ao pé de ti a ver-te trabalhar enquanto debitava palavras sem fim, só para te fazer companhia, e porque te amava. Tu nunca te cansaste de me ouvir, porque também me amavas. Foram serões e serões. Tenho saudades dos natais, dos aniversários, de te fazer pequenas surpresas que te deixavam feliz. Porque a tua felicidade era a minha. Porque é que a minha não foi a tua, pai? Se tu tivesses quem te abrisse os olhos, como me foi possível abrir, não chegaria o resto da vida para te arrependeres. Mas a verdade, é que quero que estejas bem. Porque não compreendendo bem porquê, assim eu também vou estar. Não te quero ver. Não te quero por perto. Não te quero tocar ou abraçar. Mas quero-te bem. Porque sei que estás a sofrer e não consegues sair desse lugar escuro. Também não serei eu que te vou iluminar. Eu também sofro um bocadinho todos os dias, e adivinha, ninguém me escreve palavras como estas que ainda te consegui escrever a ti.
Espero que não passes nunca por aquilo que me fizeste passar. Por aquilo que não impediste por que eu passasse. Não te desejo isso. Não desejo a ninguém. Espero que consigas viver em paz o resto da tua vida e que encontres forças.
Da tua filha
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